Penélope
“Mas, que linguagem poderia reproduzir o entrelaçamento do
masculino e do feminino melhor do que a que utiliza o entrecruzamento da trama
e da urdidura?”
FRONTISI-DUCROUX
Há uns tempos tinha começado a fazer um trabalho em crochet
e enganei-me logo no início. Achei que o erro era pequeno e que, ao continuar o
trabalho, iria tornar-se imperceptível. Pelo contrário, à medida que ia
avançando, o erro ficava cada vez mais visível, perturbando qualquer
possibilidade de harmonia. Demorei uns dias a aceitar que tinha que desfazer
tudo o que tinha feito a partir daquele pequeno erro. Quando finalmente
respirei fundo e comecei a puxar o fio, desfazendo ponto a ponto dias e dias de
trabalho, fui invadida por uma sensação de enorme prazer. Que liberdade poder
desfazer, destruir e começar de novo!
Corrigi o erro e recomecei, e o trabalho seguiu, ordeiro e
harmónico. Sempre que detectava um erro, desmanchava de imediato e repetia, com
mais atenção e foco. Aprendi muito com este trabalho, como aprendo sempre que
trabalho fios de lã. Este trabalho trouxe-me Penélope e a visão da tecelã.
Na Odisseia, enquanto Ulisses vive as suas aventuras pelo
mundo, sua mulher Penélope, em casa, espera. É uma situação típica entre o
masculino e o feminino que a humanidade reproduz nas suas histórias e nas suas
vidas há muito, muito tempo. Ulisses e Penélope amam-se, e apesar de se moverem
em dimensões distintas da história, trabalham para um objectivo comum. É
através do esforço de ambos que voltam a estar juntos, em casa. Se pensarmos
nestas duas figuras como o masculino e feminino que vivem dentro de nós, ying e
yang se quiserem, existem nesta história chaves importantes sobre o nosso
equilíbrio interno.
A espera de Penélope não é passiva. Em casa, ela tem que
enfrentar uma série de desafios para se manter fiel a Ulisses e ao amor que os
une. Tal como o seu marido, ela é colocada à prova por várias vezes e tem que
usar todos os seus poderes para as vencer. Ora um dos poderes de Penélope é a
arte de tecer.
Segundo a história, a ausência de Ulisses começou a
preocupar o sogro que resolveu que a filha deveria casar de novo. Penélope, de
início, recusa mas, perante a insistência do pai, não querendo criar grandes
conflitos, aceita colocando uma condição. Irá tecer um sudário para Laerte, pai
de Ulisses. Durante esse tempo aceita receber os pretendentes mas só casará
quando o sudário estiver terminado. A partir desse momento, Penélope tece à
vista de todos durante o dia, desfazendo todo o trabalho durante a noite,
adiando o que parecia ser inevitável.
Aqui vemos Penélope encarnar a Grande Mãe, Deusa primordial,
a Senhora do Tempo que tece o Universo e o destino de todos os seres. Fazer e
desfazer. Criar e destruir. Dia e noite. Luz e sombra. Penélope usa todos estes
aspectos duais a seu favor para ganhar tempo. Não excluindo nenhum mas
integrando todos, dando-lhes propósito. Quando, traída por uma serva, vê
revelada a sua estratégia, rapidamente arranja um novo esquema que finalmente leva
ao seu reencontro com Ulisses.
A visão da tecelã. Tudo abarca, tudo integra, tudo utiliza a
seu favor, de forma a cumprir a sua missão: que os fios se entrelacem
harmoniosamente e se cumpram nas teias que formam. Essa é também uma missão do
feminino dentro de cada um de nós, tenhamos nascido homens ou mulheres.
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